quarta-feira, 27 de maio de 2009

AOS HOMENS E MULHERES QUE AMAM DEMAIS



DEPENDÊNCIA EMOCIONAL, A TIRANIA INTERIOR.


"Quando amar significa sofrer, estamos amando demais."
"Amar se torna demais quando nosso parceiro é inadequado, desatencioso ou inacessível e, mesmo assim, não conseguimos abandoná-lo." −Robin Norwood−
A dependência emocional é o medo da liberdade e se caracteriza por comportamentos submissos, falta de confiança, dificuldade em tomar decisões, inabilidade para expressar desacordos e por um temor extremo ao abandono, à solidão e à separação.
É uma tirania encarregada de construir nossa prisão interior mediante alianças com o medo, a passividade, a negação da realidade e os sentimentos de culpa. Faz parte do caráter e se nutre de circunstâncias desafortunadas na infância de cada um. A dependência emocional se manifesta no comportamento afetivo, sexual, profissional e econômico.
O noivado, a lua de mel, “os casais perfeitos” ou as famílias sem problemas são idealizações que não se sustentam por muito tempo. A discussão franca pode gerar dor, raiva e dúvidas, porém é a única maneira de se chegar ao fundo das diferenças. Calar ou conciliar por comodidade, para não se incomodar, ou por justificativas com: “não vamos estragar bons momentos” é um grande erro. Impede a solução dos problemas.
A realidade nos demonstra que as famílias mais enfermas são aparentemente impecáveis. Ninguém levanta a voz, não se discute, não há grandes diferenças ou se fala apenas com toda educação e ponderação. Os sentimentos são secundários, a adequação é mais importante. Ao revés da realidade.
Nessas famílias onde tudo aparenta harmonia e doçura, compreensão, cozinham-se, em segredo, grandes rancores e profundas frustrações.
Na família profissional, se o empresário intui a necessidade de empreender grandes mudanças para superar dificuldades, mas espera que forças externas executem as ditas mudanças, a falência ronda. A crença dos dependentes inclui: “Para que me incomodar, questionar a honestidade, criticar minha funcionária, exigir mudança de meu cônjuge, falar claro e com sentimento ao meu filho se isso pode causar desequilíbrio? Deixa como está que funciona.”
Homens e mulheres dependentes que baseiam suas eleições de par no socialmente aceitável, levam grandes sustos quando descobrem a mediocridade por trás da fachada.
Escolhas baseadas em adequação que correspondam ao que é esperado de nós são catastróficas, pois não levam em consideração os sentimentos reais.
As piores escolhas ocorrem quando baseadas primordialmente no atrativo físico ou no poder econômico. Cedo ou tarde essas relações se convertem em algo insuportável.
Através do medo da liberdade se perpetua a dependência emocional e é confirmado o aprisionamento.
Quando tais circunstâncias geram angústia e/ou depressão, é provável que para aliviar tais sintomas seja necessário tratamento psicológico. É importante saber que o alívio dos sintomas é apenas o começo de um processo profundo de auto-conhecimento.
Um dos primeiros passos no processo de independência é combater a fascinação pela comodidade: "EU QUERO SER LIVRE, PORÉM NÃO QUERO RENUNCIAR À MINHA COMODIDADE".
Isso é obviamente impossível, pois a liberdade é conquistada através de empenho cotidiano. Assim como a recuperação de qualquer outra dependência.
Pensamos que dependência, adicção, pertencem apenas às drogas, ao álcool e ao jogo. Tal conceito é errôneo. A dependência emocional, assim como outras, provoca os mesmos sentimentos de perda, depressão, ansiedade, falta de coragem, submissão que as dependências químicas. E é trabalho a ser realizado pelo resto da vida, assim como quem tem asma precisa sempre estar alerta para uma possível crise. Não tem cura, tem recuperação. É muito perigoso, pois é progressivo. É a "doença" do "ainda": ainda não fez coisas insanas, mas vai acabar fazendo, podendo até levar à morte por causa da tensão excessiva que é causada por esse "vício". Sozinhos não podemos lidar com esse transtorno; só através de grupos de auto-ajuda e com psicoterapia. Não apenas as mulheres são acometidas por esse transtorno, os homens também. Eles se apresentam obcecados pelo trabalho, por esporte ou por hobbies, até mesmo por outras dependências, como o álcool e as drogas. As mulheres, por forças culturais e biológicas, são mais acometidas desse mal, com forte tendência a se tornarem dependentes de relacionamentos com homens complicados, difíceis e distantes. Transformam-se em “infelizes por profissão”.
"Se quisermos mudar nossa vida, é mais importante mudarmos as atitudes do que as circunstâncias. A menos que mudemos as atitudes, é improvável que as circunstâncias, realmente, possam mudar um dia." Robin Norwood
Conquista tua liberdade, ama de verdade os demais, porque um dependente emocional não conhece o amor real, conhece a necessidade. Os outros não são como você imagina, aceita-os como são e promove questionamentos se forem necessários, mas embasados em problemas também reais e não em tuas carências.
Conquista tua liberdade. Valoriza-te, evita frustrantes dependências, não te anules e não deixes que ninguém te anule ou anule tua vontade. E, consequentemente, não deixes que alguém se anule ao teu lado. Só alguém livre pode criar relações serenas e construtivas nas quais se vive o verdadeiro amor. E só terás a certeza de ser amado se tiveres contigo alguém que fica por que quer e não por que precisa. "UNIR-SE SEM IGUALAR”.



terça-feira, 19 de maio de 2009

CO-DEPENDÊNCIA SIMBIÓTICA


Tendo a personalidade adictiva maturado e sobrepujado o Eu verdadeiro que tenderá a diminuir e, nos casos fatais, a desaparecer, a relação adictiva se estabelece com força.
Análise sobre os meandros da relação adictiva estão especificados em outro artigo centrado nesse assunto. Agora analisaremos a SUBSTITUIÇÃO.
Quando um adicto não aceita, real e profundamente, sua condição de dependente que o levará a desenvolver seu Eu verdadeiro, pode ter aceitado ter um "vício", achando que este solucionado tudo ficará bem. A doença da Dependência é mais séria, muito mais mesquinha e trágica do que isso.
Esse é um artigo experimental baseado na observação de um caso estabelecido nas bases que serão aqui apresentadas.
Um adicto na ativa que se conscientiza do mal que o objeto de adicção está lhe provocando poderá fazer grande esforço para reduzi-lo a níveis aceitáveis, ainda assim a doença se manterá intocada uma vez que trabalhou apenas o externo. É nessa condição que a Substituição se estabelece.
Os caminhos mais comuns são de substituir o objeto de adicção, por exemplo, o álcool, por jogo, comida, etc. O mesmo acontece com as drogas onde o usuário ficará pulando de uma para outra e até mesmo chegará à dependência de remédios. Espera-se que seja pelos psicotrópicos e assemelhados, mas há casos em que o objeto de adicção foi deslocado para o inocente analgésico. Em superdoses pode provocar a buscada alteração de humor e levar à sonolência bem vinda para o adicto. A sonolência é o destino final de fuga para os problemas ou situações psíquicas que não consegue controlar ou administrar. Em última instância é a fuga do sofrimento.
É comum que um adicto encontre outro adicto para parceiro. Para usarem juntos sua droga de preferência. Muitas vezes essa convivência simbiótica se rompe se o parceiro for um usuário mais violento e com isso dará ao outro a noção de perigo que atravessam. Então, o mais lúcido diminuirá sua cota de objeto de adicção, mas não se livrará da doença e seu objeto de adicção passará a ser o parceiro.
É comum que não o ame e nem se apiede realmente, mas não rompe a relação. É como se estivesse na frente de um copo ou de uma dose: sabe aonde chegará, mas se mantém fiel. A compulsão impede que haja um real rompimento uma vez que não trata a doença.
A compulsão é a ferramenta mestra da Dependência, é ela que mantém o adicto aprisionado. Só chegando às raízes de sua personalidade adictiva adquirida na primeira infância dentro do meio familiar onde se desenvolveu é que consegue controlá-la. Isso é conquistado pela consciência da dependência e por psicoterapia. Os remédios auxiliares aliviarão a pressão para que haja movimento da parte do adicto em direção à recuperação, mas não curam. Esse ponto é nevrálgico. OS REMÉDIOS NÃO CURAM.
A situação de co-dependência estabelecida dentro deste tipo de relação permite que o usuário mais agudo continue seu uso, livre do controle imposto pelas famílias. As etapas de comportamento reativo das famílias inexistem. O parceiro não estimula a recuperação para não perder seu próprio objeto de adicção que é o outro.
Como se dá tal transferência?
Antes de mais nada é importante analisar o script de vida do adicto. Normalmente desenvolveu a adicção para escapar da dor de se sentir deslocado, imprestável para o mundo que o cerca. É o que podemos chamar de desvalidação. O processo é extremamente doloroso. É a total anulação da capacidade de se desenvolver enquanto ser humano e, principalmente a incapacidade de concorrer com seus iguais. Sempre será o último da fila. Provavelmente, na infância, foi substituído por alguém que considerou melhor ou mais capacitado para usufruir o amor dos pais.
Ao se estabelecer a dependência sobre um adicto sob a aparente forma de salvação do mesmo, necessita que este se mantenha adicto. Procura nessa fonte degradante uma validação para si mesmo. Sente-se melhor porque existe alguém mais deteriorado do que ele próprio. É a mudança de humor ansiada para alívio de suas próprias tensões internas.
Como toda a adicção, esta também aumentará com o tempo e o uso, se podemos chamar assim. Na verdade, usar pessoas é mais corriqueiro do que desejaríamos que fosse. Então os malefícios da adicção crescem e a relação se torna quase insuportável, assim como o álcool e a droga destroem o usuário, a convivência destrói o adicto emocional. Ainda assim não abandonará o parceiro e, inclusive, é possível que tente ajudá-lo sabendo que não conseguirá. Se conseguir, o jogo se romperá e ele perderá sua "droga" de preferência.
O processo acontece em cima dessas premissas:
"O outro igual a mim é confortável, pois não me julga ou condena. Me aceita, e, muitas vezes, me favorece momentos em que posso me mostrar sem nenhuma máscara ou cuidado social."
"Manter a co-dependência me livra de ME VER, me perceber, me admitir doente. Se esse elo for cortado, terei que enxergar uma corrente muito maior, com implicações profundas e dolorosas. O outro igual a mim, me alimenta. Me fortalece em minhas limitações. Não preciso me ver e muito menos me superar. Isso não é esperado de mim, não deseja essa consciência que terminaria com a farsa vivida. Eu desejo que ele permaneça como está. Desta forma seguimos em "tribo". Tribo dos desvalidos, dos não amados, dos frágeis e outros componentes destrutivos deste quilate que revelam minhas incapacidades.
Se o processo for estabelecido dentro de uma família, são grandes as chances que todos os seus membros desenvolvam a mesma patologia comportamental com algumas variantes, mais ou menos, agudas dentro da visão de resposta individual. De qualquer forma é uma situação difícil de ser rompida a menos que um dos componentes de ascendência implodam o jogo e estabeleça bases mais sadias.
Desmontar a relação estabelecida incluirá mudar o rumo de sua vida ou encontrar outro adicto disposto a partilhar com ele o processo destrutivo. As duas coisas são difíceis e amedrontadoras.
O que existe de trágico nessa dependência é que ela possui justificativas válidas para o status quo. Como largar a pobre criatura adicta à própria sorte? Se for casal e tiverem filhos, como abandoná-los a essa sorte? E assim por diante. Ao mesmo tempo em que essas justificativas o salvam da decisão de mudança, fazem com que se sinta bem aos próprios olhos: está tentando, não é culpa dele se o outro não colabora mantendo-se agarrado à adicção.
É uma terrível forma de adicção, pois é maquiada por solidariedade com o adicto ativo, preocupação pelas pessoas dele dependentes e não têm nenhum estímulo adictivo químico (se tiver, estará sob razoável controle), ou seja, é invisível. E as saídas da situação terão, aparentemente, ingredientes de crueldade, uma vez que será preciso afastar-se do adicto, romper vínculos, estabelecer novas metas, pelo menos até recuperar a si próprio para poder socorrer verdadeiramente o parceiro.
Quanto à questão de ajudar um adicto nunca devemos esquecer que por mais que tenhamos conhecimento claro de sua doença, quem tem que adquirir essa certeza é o próprio adicto e ele é quem definirá sua posição diante da recuperação. O máximo possível é acompanhá-lo pelos caminhos que terá que trilhar. Caminhos novos e, em princípio, de sofrimento até que a consciência da libertação se faça. Mas uma vida inteira de aprisionamento vale mil vezes, os poucos meses de indignação consigo mesmo.
Consciência e admissão da doença e dos processos doentios é a única forma de achar o caminho da recuperação. Caminho árduo que exige coragem, humildade e determinação férrea. E que oferece em troca, tranqüilidade, alegria legítima e crescimento emocional e psíquico.

NOITES E DIAS OCULTOS







Grupo Lux – N.A. –Fpolis – SC

Oba! Sexta-cheira!
Ríamos entusiasmados com a perspectiva enquanto alguém arrumava as carreiras cuidadosamente sobre a mesa de vidro.
No canto da sala o bar coalhado de todos os sabores alcoólicos possíveis. Eram muito diversos os gostos da galera: Desde “jararaca”, a caipira feita com álcool 90 graus, preferida por quem vivia ou vivera no mar, onde a bebida é persona non grata e sempre presente e se faz imperiosa a criatividade, até um legítimo escocês do Paraguai.
O cheiro da maconha incensava o ar misturado com dezenas de aromas de variadas procedências que usávamos para disfarçar, ou encobrir o indisfarçável. Mentíamos para nós mesmos, mas este era nosso mais íntimo comportamento.
Todos os preâmbulos de um teatro já muito vivenciado e a peça decorada em detalhes por todos nós, personagens calejados.Como no teatro alguém gritou:
- Merda!
Todos retribuíram o bordão de boa sorte. Neste palco a boa sorte seria não implodir numa overdose.
A fila formou-se rapidamente sem necessária chamada. Todos sabiam quando as carreiras, soldados mercenários de farda branca, apresentavam armas. Baionetas caladas com a qual nos suicidávamos lentamente. Uma estocada por dia, às vezes, como hoje, muitas, de todas as profundidades.
Os baseados cessaram. Chegara ao fim o tempo do “aperitivo”. Agora era a vez do prato principal. A mesa era baixa, nos ajoelhávamos diante dela para penetrarmos no mundo do poder. Nós, super homens enquanto abraçados ao pó, naufragados na criptonita branca quando o efeito se esvaía. Saí dali entusiasmado, berrando minha desconexão com a realidade como uma bandeira de vitória e também para sobrepujar os berros e gargalhadas dos parceiros.
Aos poucos o grupo se desfazia, cada um tomando seu rumo.
Na esquina Tomás abaixa as calças e balança a bunda para uma despedida criativa e hilária. Os que ainda seguiriam juntos abaixaram suas calças e retribuíram o tchau-tchau sensacional. Tomás era mesmo o cara. E fomos falando sobre ele até que nos esquecêssemos do que estávamos falando.
Abri a porta devagar. Encharcado de álcool, calibrado pela cocaína era meio complicado encontrar a fechadura rapidamente.
Com a garrafa na mão acendi a luz para certificar-me que era minha casa. Nem olhei para o conhecido sofá azul, mais urgente certificar-me da quantidade de líquido que restara a garrafa.
-- Pouca, meiota apenas.
Fechei a porta novamente e voltei à rua. Não sobre os passos que me trouxeram, já me perdera deles. Não marcavam uma linha possível de ser repetida, andariam conforme a vontade dos pés que tropeçavam sobre si mesmos.
As lojas 24 horas dos postos de gasolina foram um lance de marketing espetacular. Um CVV de primeira necessidade numa sigla um tanto diferente da original: Centro de Valorização do Vício. Eu era mesmo brilhante em minhas filosofias dedutivas. As noções se clareavam na mente e as idéias surgiam magistrais. Antes de entrar na loja dei outra fungada. Já estavam mostrando suas garras afiadas os pensamentos soturnos dos quais eu fugia. Fora de cogitação permitir que eles se sobrepusessem à minha vontade. Eu, o centro do mundo. Não, do Universo.
Comprei logo duas garrafas, me economizaria caminhadas que, eu sabia, se tornariam cada vez mais difíceis. Em casa outra vez. Que coisa indecifrável o caminho da casa, nunca o esquecia.
Todos dormiam, já não se preocupavam com tragédias, ela viria de qualquer maneira, uma questão de tempo ou sorte. Também não me procuravam nos lugares que eu freqüentava. Não eram bem vindos e tinham sido enxotados dezenas de vezes.
Eu não tinha muita certeza se ainda existia para eles, mas isso também perdera a importância desde que me deixassem em paz e não retomassem a chorumela de conscientização babaca e o faticínio de catástrofe iminente.
-- Que se fodam, panacas! – desejei enquanto bebia no gargalo para ser mais rápido o plá, ou zuim que eu buscava com sofreguidão.
Fiz várias carreiras, assim economizaria trabalho posterior.
Sábado. Domingo. Dias iguais. Única diferença o mergulho que alcançava a cada dia mais profundidade. Águas mais escuras e densas. Aos poucos a vida naufragava numa sucessão de dias que entraram as semanas num colar de pedaços de mim até que me arrastassem para a cama e me atirassem sobre ela desmaiado.
As crianças eram protegidas da infame visão, se é que ainda era possível ocultar o estado de molambo que me jogava pelas paredes até acertar o chão. Com uma capacidade incrível, conseguia sair para buscar mais garrafas. A maninha branca me dava arrimo e força.
O sofá tornara-se incômodo e estreito. Deixa rolar o chão móvel sob o corpo que se encolhe na falta de sono e alimento. Coisas quase inúteis e completamente sem sentido nos mareados dias de uso abusivo. Muito tempo depois me contaram que este tobogã feérico durara dez dias e se repetira um rosário de vezes. Terminavam com boa sorte, não me engolfavam definitivamente. Eu sobrevivia.
Todos me olhavam. Eu nada via. Rastejava igual aos vermes brancos, reais de alucinação, à minha volta. Sabia que era um deles, me comportava como um deles. Já perdera a firmeza das mãos nesse décimo, ou décimo quinto, ou centésimo dia. Eu não sabia mais nada sobre dias.
Desconhecia sol e lua se é que teriam existido ou se haveria diferenças entre eles. Isso fazia com que derramasse pó, polvilhando o assoalho. Não era permitido perder um só minúsculo grão invisível. Para impedir esse crime imperdoável eu lambia o chão enquanto rosnares simiescos saíam de minha garganta queimada pelo álcool e o nariz a arder cocaína.
Os odores sumiram. Sorte minha, não sentia o empesteado de minhas secreções já desmanchadas. Uma tentativa falida do corpo expelir os diabos com que eu o presenteava. Satã fazia cama na minha cabeça, na minha vontade e no excremento de gente em que eu me tornara: sucursal do inferno. O corpo me derrotava era o último pensamento robotizado que transitava pelo meu cérebro como estrela cadente e me lançava na noite suada e mórbida do desfalecimento. Meu corpo me salvava. Voltava, comia, me disfarçava de gente, aliviava o desgaste que se tornara insuportável e corrosivo. Ácido sulfúrico pastando e ruminando meus neurônios que apodreciam.
Tão logo recuperado a lembrança da primeira viagem com a deusa branca seduzia. A fascinação de revivê-la. Sentir-se acima e além do mundo ridículo e cruel. Sem imaginação.
Esse delírio, impossível de ser revivido me tangia para outras festas, novas e tão conhecidas orgias dos sentidos pagãos.
Recomeçar, desfalecer. Apodrecer arfar em busca do caminho de volta. Ciranda que de roda só tem o pó, o álcool e o abandono. Nenhuma cantiga de criança, nenhum gesto ou toque, nem sexo me envolvia mais. Apenas com a cocaína eu me deitava.
Até hoje não sei como atravessei essa ponte para o inferno sem me estatelar no abismo de pedras agudas que me esperavam para o empalamento.
Internações, fugas, recaídas. Nova ciranda, novo rio dos mortos para navegar.
Aos poucos, muito lentamente, agora com amparo dos companheiros, irmãos de desgraça que conseguiram se libertar, a minha consciência emergia ainda abalada, mas respirou através de mim.
Descer ao reino de Vulcano é fácil, o próprio peso do propósito ajuda a afundar. Voltar e escalar trezentos Everest, atravessar seiscentos Triângulos das Bermudas e milhares de ondas encapaladas, isso não era nem um pouco fácil e às vezes, o desânimo quase me fazia submergir de novo.
Hoje me sento aqui e seguro tua mão para te dizer que é possível, que este casamento que trazes nos olhos alucinados, na dificuldade de te manter sentado, não é indissolúvel. Este casamento foi sagrado pelo diabo que podes vomitar sabendo que o divórcio só será consolidado se for renovado dia a dia pelo resto de tua vida.
Falo-te vida com entonação maiúscula porque, como eu, esqueceste o significado dela. Por amor doentio e cruel, louco como estive, tu vegetas e perdeste o sentido do que é viver.
Estendo-te a mão por que alguém a estendeu para mim num dia em que a única saída era a morte. Não sou anjo, nem uma alma iluminada. Eu apenas já andei abraçado com o mesmo desespero que abraças agora.